sábado, 5 de março de 2011

Racismo Cordial

A sucessão de articulações contra a discriminação parte da identificação de que o racismo brasileiro é heterofóbico, ou seja, nega absolutamente as diferenças, funcionando como um racismo cordial. Para informações mais palpáveis, o censo do IBGE (2000) foi fundamental, detalhando melhor a questão da auto identificação étnica e até da religiosidade, "com a possibilidade de as pessoas se dizerem adeptas das religiões afro-brasileiras, e não mais só do espiritismo, como antigamente", esclarece Vagner Gonçalves.
Mesmo assim, pela própria relação estrutural do negro, é difícil falar de racismo e de preconceito no Brasil. "Por uma situação histórica e cultural, o racista ou preconceituoso é sempre o vizinho", explica o pesquisador.
A cientista social Maria Lúcia Montes é da mesma opinião: "Quando se pergunta a um brasileiro se ele é racista, a negação é a resposta mais comum: "Não, imagine... tenho tantos amigos negros". Se a indagação for: "Você conhece alguém que é racista?", quase sempre a resposta é afirmativa: "Ah! Conheço um monte. Minha mãe, meu pai, meu irmão, meu vizinho..."
Essas respostas são "honestas, porque não há ódio racial contra aquele negro conhecido. A lógica é a de que com o negro meu conhecido não tem o menor problema. Agora, o negro desconhecido é sempre suspeito", diz Maria Lúcia.
Costuma-se também esconder o racismo atrás do biombo da piada. Em um passado recente, alunos da faculdade de direito mais tradicional do país, a da USP, no Largo de São Francisco, publicaram um informativo onde estavam impressos dizeres como: "A escravidão como salvação dos negros africanos". Diante dos protestos quanto a tais insanidades, os responsáveis disseram que foram mal-interpretados, não eram racistas e sua intenção era brincar com a hipocrisia e o preconceito dos outros.
Se a comparação for entre países, os brasileiros dizem que racista é o norte-americano. Ou seja, continua a ser o vizinho. Acontece que, no Brasil, raça, cor, status e classe social estão intimamente ligados. Se o negro é rico, ele perde a cor. Passa a ser visto pela condição econômica. Ao mesmo tempo, o racismo se perpetua por meio da restrição da cidadania, da imposição de distâncias sociais, criadas pelas consideráveis diferenças de renda e de acesso à educação.
Quando o jogador de futebol Ronaldo Fenômeno disse, durante uma entrevista a jornalistas, que é branco, ele estava coberto de razão, de acordo com Maria Lúcia: "Essa associação perversa da cor e da condição social resulta na desatenção à cor de quem ‘venceu na vida’ ". Segundo a professora, Ronaldo está falando a língua da sociedade brasileira, na qual negro é pobre; se deixou de ser pobre, deixou de ser negro.
Há muitos exemplos desse tipo, lembra o artista plástico e fundador do Museu Afro Brasil Emanoel Araujo. Pessoas que conhecemos pelas lições escolares ou como nomes de ruas tiveram sua cor apagada pelos historiadores, embora enquanto viveram não tenham renegado suas origens. "Teodoro Sampaio, Cruz e Souza, Luís Gama, Juliano Moreira, Paula Brito, Carlos Gomes, todos descendentes de negros, viraram personagens nacionais sem cor." O "branqueamento" atingiu até as fotografias desses nomes ilustres.
No início do século 20 também se "branqueavam" literalmente os jogadores de futebol. Os craques eram obrigados a usar pó-de-arroz porque os times só admitiam brancos. Daí persistir o apelido de "pó-de-arroz" dado a alguns times.
Na periferia das lições aprendidas nas escolas estão outros episódios que tentaram forçar o "branqueamento" da população. No livro Uma História não Contada - Negro, Racismo e Branqueamento em São Paulo no Pós-Abolição, o doutor em história pela USP Petrônio Domingues sustenta a tese de que a imigração européia maciça foi calculada pela elite paulista para que os negros não ocupassem espaço como operários na indústria emergente.
Em pleno século 20, apesar de existir uma pequena, porém respeitável, classe trabalhadora negra especializada, formada por artesãos sapateiros, escultores, ourives, fundidores, em São Paulo o negro era impedido de entrar em hotéis, bares, cinemas, lojas e teatros. Até os anos 1950, as religiões afro-brasileiras eram perseguidas em todo o país, os templos destruídos.
Ainda hoje há denúncias de negros impedidos de entrar pela porta da frente ou ocupar o elevador social em alguns prédios. A diferença é que, atualmente, a discriminação configura crime.
Não é à toa que mestiços reneguem a gota de sangue africana. A vergonha de ser negro é fruto de um estigma colocado sobre a população e de uma estratégia de sobrevivência social. É difícil exigir que, vitimizadas nas relações sociais, políticas e econômicas, as pessoas construam um senso de auto-estima ou de autoconsciência.
O "fascínio da brancura" igualmente contaminou a literatura. A Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães, e O Mulato, de Aluísio de Azevedo, provam que os escritores vacilavam diante das complexidades raciais. Essa ambigüidade fez Guimarães afirmar em outro texto: "No Brasil, ninguém pode gabar-se de que entre seus avós não haja quem não tenha puxado flecha ou tocado marimba".
Mas quem é negro no Brasil? O Censo 2000 registra que os brasileiros se auto-identificaram como: pardos (39%) e pretos (6%). Os pardos são produto do racismo do século 19, que assim rotulava a miscigenação entre as raças branca e negra. A genética moderna nega a existência de raças humanas e atesta que quase 90% da população brasileira tem significativa ancestralidade africana.
Percorrendo essas dualidades, o ex-ministro da Cultura Francisco Weffort resumiu, em texto publicado no catálogo da exposição comemorativa da Data Nacional da Consciência Negra, em 20 de novembro de 2001, o que está nas entrelinhas da nossa história: "Nossas confusões em torno da questão do negro estão na base das nossas confusões sobre a nossa própria identidade como povo".

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